Etnografando

Sistemas políticos da Alta Birmânia

[...] Os antropólogos sociais que, na esteira de Radcliffe-Brown, usam o conceito de estrutura social como uma categoria por meio da qual se pode comparar uma sociedade com outra pressupõem na verdade que as sociedades de que tratam existem durante todo o tempo em equilíbrio estável. Será então possível descrever, por meio de categorias sociológicas comuns, sociedades que presumivelmente não estão em equilíbrio estável? (LEACH, 1996, p. 67);



Minha conclusão é que, conquanto modelos conceituais de sociedade sejam necessariamente modelos de sistemas de equilíbrio, as sociedades reais não podem jamais estar em equilíbrio. A discrepância está ligada ao fato de que, quando estruturas sociais se expressam sob forma cultural, a representação é imprecisa em comparação com a fornecida pelas categorias exatas que o sociólogo, qua cientista, gostaria de empregar. Digo que essas inconstâncias na lógica da expressão ritual são sempre necessárias para o bom funcionamento de qualquer sistema social. [...] Sustento que essa estrutura social em situações práticas (em contraste com o modelo abstrato do sociólogo) consiste num conjunto de ideias sobre a distribuição de poder entre pessoas e grupos de pessoas. Os indivíduos podem nutrir, e nutrem, ideias contraditórias e incongruentes sobre esse sistema. São capazes de fazê-lo sem embaraço por causa da forma em que suas idéias são expressas. A forma é a forma cultural; a expressão é a expressão ritual (LEACH, 1996, p. 68);

Estrutura social

As estruturas que o antropólogo descreve são modelos que existem apenas em sua própria mente na forma de construções lógicas. [...] As sociedades reais existem no tempo e no espaço. A situação demográfica, ecológica, econômica e de política externa não se estruturam num ambiente fixo, mas num ambiente em constante mudança. Toda sociedade real é um processo no tempo (LEACH, 1996, p. 68 e 69);

Unidades sociais

As unidades políticas na Região das Colinas de Kachin variam grandemente de tamanho e parecem ser intrinsecamente instáveis. Num extremo da escala pode-se encontrar uma aldeia composta de quatro famílias que reivindicam firmemente o seu direito de ser considerada uma unidade plenamente autônoma. No outro extremo temos o Estado Chan de Hsenwi, que antes de 1885, continha 49 subestados (möng), alguns dos quais compreendiam por sua vez mais de cem aldeias separadas. Entre esses dois extremos podemos distinguir numerosas outras variedades de “sociedade”. Esses vários tipos de sistemas políticos diferem uns dos outros não só em escala mas também nos princípios formais dos quais são organizados. [...] a essência de minha tese é que o processo pelo qual as pequenas unidades se desenvolvem em unidades maiores e as grandes unidades se fragmentam em menores não é uma simples parte do processo de segmentação e agregação, é um processo que envolve mudança estrutural (LEACH, 1996, p. 70);

Sistemas de modelo

Quando o antropólogo tenta descrever um sistema social, ele descreve necessariamente apenas um modelo da realidade social. Esse modelo representa, com efeito, a hipótese do antropólogo sobre “o modo como o sistema social opera”. As diferentes partes do sistema de modelo formam, portanto, necessariamente, um todo coerente – é um sistema em equilíbrio. Isso porém não implica que a realidade social forma um todo coerente; ao contrário, a situação real é na maioria dos casos cheia de incongruências; e são precisamente essas incongruências que nos podem propiciar uma compreensão dos processos de mudança social (LEACH, 1996, p. 71);
Em situações como as que encontramos na Região das colinas de Kachin, podemos considerar que qualquer indivíduo particular detém uma condição social em sistemas sociais diferentes ao mesmo tempo. Para o próprio indivíduo, tais sistemas apresentam-se como alternativas ou incongruências no esquema de valores pelo qual ele ordena sua vida. [...] Em matéria política, os kachin têm diante de si dois modos de vida totalmente contraditórios. Um deles é o sistema chan de governo, que se assemelha a uma hierarquia feudal. O outro é [...] organização de tipo gumlao; é um sistema essencialmente anarquista e igualitário. [...] A maioria das autênticas comunidades kachins não são nem do tipo gumlao nem do tipo chan, mas estão organizadas segundo um sistema [...] gumsa, que é, com efeito, uma espécie de compromisso entre o ideal gumlao e o chan (LEACH, 1996, p. 71 e 72);

Ritual

O ritual [...] “serve para expressar o status do indivíduo enquanto pessoa social no sistema estrutural em que ele se encontra temporariamente” (LEACH, 1996, p. 74);
O mito [...] é a contrapartida do ritual; mito implica ritual, ritual implica mito, ambos são uma só e a mesma coisa. [...] Os mitos, pra mim, são apenas um modo de descrever certos tipos de comportamento humano (LEACH, 1996, p. 76 e 77);

Interpretação

[...] ação ritual e crença devem ser entendidas como formas de afirmação simbólica sobre a ordem social. [...] Suponho que todos os seres humanos, qualquer que seja a sua cultura e o seu grau de complexidade mental, tendem a construir símbolos e a fazer associações mentais do mesmo tipo geral. [...] suponho que com paciência eu, um inglês, posso aprender a falar qualquer outra língua verbal – por exemplo, kachin. Além disso, suponho que então serei capaz de dar uma tradição aproximada em inglês de qualquer afirmação verbal comum feita por um kachin. [...] suponho que posso, com paciência, chegar a compreender aproximadamente até mesmo a poesia de uma cultura estrangeira e que posso então comunicar a outros essa compreensão. Da mesma maneira, suponho que posso dar uma interpretação aproximada mesmo de ações não-verbais, como itens do ritual. [...] Estou afirmando que onde quer que eu encontre um “ritual” (no sentido em que o defini) posso, como antropólogo, interpretá-lo (LEACH, 1996, p. 77 e 78);
O ritual em seu contexto cultural é um modelo de símbolos; as palavras com que o interpreto são outro modelo de símbolos composto largamente de termos técnicos inventados por antropólogos – palavras como linhagem, classe, status etc. os dois sistemas de símbolo têm algo em comum, a saber, uma estrutura comum. [...] A estrutura que é simbolizada no ritual é os sistema das relações “corretas” socialmente aprovadas entre indivíduos e grupos. Essas relações não são formalmente reconhecidas em todos os tempos. [...] Os desempenhos rituais tornam momentaneamente explícito aquilo que de outro modo é ficção (LEACH, 1996, p. 78);

Estrutura social e cultura

A cultura proporciona a forma, a “roupagem” da situação social. [...] Porém a estrutura da situação é largamente independente de sua forma cultural. [...] Admito que as diferenças de cultura são estruturalmente significativas, mas o mero fato de dois grupos de pessoas serem de cultura diferente não implica necessariamente – como quase sempre se supôs – que pertençam a dois sistemas sociais totalmente diferentes (LEACH, 1996, p. 79);
Para os meus propósitos, o que tem significado real é o modelo estrutural básico, e não o modelo cultural manifesto. Estou interessado não tanto na interpretação estrutural de uma cultura particular, mas no modo como as estruturas particulares podem admitir várias interpretações culturais e no modo como as estruturas diferentes podem ser representadas pelo mesmo conjunto de símbolos culturais. Ao tratar desse tema, procuro demonstrar um mecanismo básico da mudança social (LEACH, 1996, p. 80); 

Chans

Agricultores de arroz irrigado que habitam o vale. Budistas. Classes estratificadas em aristocratas, plebeus e casta inferior. À exceção de alguns plebeus da casta inferior, todos os chans falam algum dialeto tai. Organizados politicamente em Estados (möng), tendo cada Estado seu príncipe hereditário (saohpa). Esses möngs vivem às vezes em isolamento; às vezes são federados como unidades de um möng maior (LEACH, 1996, p. 117);  

Kachins

[...] categoria geral para denotar todos os povos da Região das Colinas de Kachin que não são budistas (nem mesmo teoricamente). Essa categoria kachin inclui falantes de vários dialetos diferentes [...] A sociedade kachin inclui numerosas formas de organização política, mas estas podem ser enfeixadas em dois tipos polarizados, gumlao e gumsa: Kachin gumlao – espécie de organização “democrática” em que a entidade política é uma aldeia única e não existe diferença de classes entre aristocratas e plebeus; Kachin gumsa – espécie de organização “aristocrática”. A entidade política é aqui um território chamado mung [...] que tem a governá-lo um príncipe de sangue aristocrático denominado duwa, que assume o título de Zan (LEACH, 1996, p. 118);

Método do autor

Presumo que dentro de uma área definida de forma um tanto arbitrária – isto é, a Região das Colinas de Kachin – existe um sistema social. Os vales entre as colinas estão incluídos nessa região, de modo que os chans e os kachins são, nesse nível, parte de um sistema social único. Dentro desse sistema social maior existem, num período dado, um número de subsistemas significativamente distintos que são interdependentes. Três desses subsistemas poderiam ser classificados como chan, kachin gumlao e kachin gumsa. Considerados simplesmente como modelos de organização, podemos pensar esses subsistemas como variações sobre um tema. A organização kachin gumsa modificada numa direção seria indistinguível da dos chans; modificada noutra direção, seria indistinguível da kachin gumlao. Consideradas historicamente, tais modificações realmente ocorrem, e é lícito falar de kachins que se tornaram chans ou de chans que se tornaram kachins. Quando, pois, eu, na qualidade de antropólogo, examino uma dada localidade kachin ou chan, devo reconhecer que qualquer equilíbrio do tipo que parece existir pode ser, na verdade, um equilíbrio muito transitório e instável. Além disso, devo estar constantemente ciente da interdependência dos subsistemas sociais. Em particular, se examino uma comunidade kachin gumsa, devo esperar que grande parte do que constatar pode ser ininteligível, a não ser por referência a outros modelos de organização correlatos, por exemplo, chan ou kachin gumlao (LEACH, 1996, p. 121).


Referência Bibliográfica

LEACH, Edmund Ronald. Sistemas políticos da Alta Birmânia. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996.
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O que pensa Raymond Firth?



Os conceitos de estrutura, função, instituição e organização social para Raymond Firth 


O conceito de estrutura social é um recurso analítico que serve para compreender como os homens se comportam socialmente. As relações sociais, de importância crucial para o comportamento dos membros da sociedade, constituem a essência do conceito de estrutura, de tal sorte que, se estas relações não operassem, a sociedade não existiria sob essa forma (FIRTH, 1973, p. 36 e 37);

Cada ação social pode ser pensada como tendo uma ou mais funções sociais. Função social pode ser definida como sendo a relação entre uma ação social e o sistema do qual a ação social faz parte, ou, alternativamente, com o resultado da ação social em termos de um esquema de meios e de fins de todas as outras ações por ela afetadas. [...] Nenhuma ação social, nenhum elemento da cultura pode ser adequadamente estudado ou definido isoladamente. Seu significado é dado por sua função, pela parte que ele desempenha num sistema de interações (FIRTH, 1973, p. 38 e 39);

A instituição é o conjunto de valores e princípios estabelecidos tradicionalmente. [...] A instituição é mantida por meio de um aparato material, cuja natureza pode ser entendida somente pela consideração dos usos para os quais ele serve, e por um pessoal recrutado em grupos sociais apropriados (FIRTH, 1973, p. 39);


Organização social implica algum grau de unificação, a união de diversos elementos numa relação comum. Para isto, pode ser conveniente supor a existência de princípios estruturais, ou vários processos podem ser adotados. Isto envolve o exercício da escolha, o tomar decisões. Estas, como tais, dependem de avaliações pessoais, que são a transformação dos fins ou valores grupais em termos que adquiram significado para o indivíduo. [...] Implica o reconhecimento do fator tempo na ordenação das relações sociais. [...] O conceito de organização social, também, leva em conta as magnitudes. [...] pressupõe também elementos de representação e responsabilidade. [...] O conceito de organização social é importante também para a compreensão da mudança social (FIRTH, 1973, p. 41 e 43);

Neste aspecto da estrutura social se encontra o princípio de continuidade da sociedade; no aspecto da organização se encontra o princípio de variação ou mudança – que permite a avaliação da situação e a escolha individual (FIRTH, 1973, p. 46).



Referência Bibliográfica

FIRTH, Raymond. Organização social e estrutura social. In: CARDOSO, F. H.; IANNI, O. (Orgs.). Homem e sociedade: leituras básicas de sociologia geral. 8 ed. São Paulo: Editora nacional, 1973.
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Galleria




As fotografias acima retratam um evento muito particular: é a conferência de paz entre "Nuers e Dinkas" que aconteceu no próprio Sudão em 1999.


Fonte: Washington Post
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Documentários


Alguns vídeos para reflexão e estudo baseado no trabalho dos mais notáveis autores da Antropologia  Britânica.  É importante ressaltar que os vídeos estão em inglês e não possuem legendas.









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A Antropologia Britânica



Segundo Laplantine (1988), a antropologia britânica pode ser caracterizada como: 


1) antievolucionista: oposição a uma compreensão histórica do social (as reconstruções hipotéticas dos estágios, indo das sociedades “primitivas” às “civilizadas”, bem como a abordagem da historiografia). Dedica-se preferencialmente à investigação do presente a partir de métodos funcionais (Malinowski), e, em seguida estruturais (Radcliffe-Brown): a sociedade deve ser estudada em si, independentemente de seu passado, tal como se apresenta no momento no qual a observamos. Modelo sincrônico; 
2) antidifusionista; uma sociedade não deve ser explicada nem pelo que herda de seu passado, nem pelo que empresta a seus vizinhos; 
3) de campo:  esse caráter empírico (observação direta de uma determinada sociedade, a partir de um trabalho exigindo longas estadias no campo) e indutivo da prática dos antropólogos ingleses apóia-se numa longa tradição britânica: o empirismo dos filósofos desse país; 
4) e social:  pois ao contrário da antropologia americana, privilegia o estudo da organização dos sistemas sociais em detrimento dos comportamentos culturais dos indivíduos.

Para Eriksen e Nielsen (2010), Malinowski e Radcliffe-Brown fundaram duas “linhagens” na antropologia inglesa que competiam diretamente em alguns aspectos e complementarmente em outros. Em 1930, havia efetivamente apenas um centro acadêmico da nova antropologia na Grã-Bretanha, com sede na London School of Economics e dirigido de 1924 a 1938 por Malinowski, sob o olhar de Seligman. Na LSE Malinowski ensinou a quase toda a geração seguinte de antropólogos britânicos: Firth, Evans-Pritchard, Fortes, Leach dentre outros nomes ilustres. Em Oxford, a velha guarda reinou até meados da década de 1930, quando Evans-Pritchard e depois Radcliffe-Brown chegaram para construir um refúgio para o estrutural-funcionalismo. A década de 1940 na Grã-Bretanha pertenceu a Radcliffe-Brown, a Oxford e a um estruturalismo sociológico. Havia, portanto, na antropologia britânica, um grupo centrado em Oxford e outro sediado na London School of Economics, mas tanto Malinowski como Radcliffe-Brown exerceram uma influência duradoura sobre a antropologia social: os métodos de campo de Malinowski foram adotados por membros do outro campo e todos tiveram que levar em consideração os conceitos de estrutura e função e a conseqüente “ciência do parentesco” de Radcliffe-Brown durante pelo menos uma década depois de sua morte.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 

ERIKSEM, Thomas Hylland Eriksen; NIELSEN, Finn Nielsen. História da Antropologia. 4 ed. Petrópoles: Vozes, 2010.

LAPLANTINE, F. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense, 1988.

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